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segunda-feira, 3 de junho de 2013

Da vez que...

Pode parecer estranho, mas mesmo não sendo, porque estranho é tudo aquilo que não se conhece, e, em se tratando disso, caso conhecido, portanto, não estranho, visto de vista, presenciado de presença, olhado de longe: sabido; foi assim, que surgiu, de passagem passada, no tempo, minha vó.

***

"Quem num pode com o pote não segura na rudía. Antes, nessa rua daqui da frente, no lugar dessas galerias, tinham Caibeiras. Seu avô dizia que cansou de levar Bidú, Compade Zé, Galego e tantos outros para casa. Tudo medroso. Ficavam conversando até tarde e, na hora de se ir, ninguém queria ir, ir só. Por acaso, ele era moleque de entrega? Nada. Era corajoso. Não tinha medo de assombração. Aqui, no esquisito, cheio do mato, via-se passar muitos malassombros. Homem do caixão na cabeça; mulher chorando, se lamentando, na calada de noite; cachorro preto 'doszolhos' vermelhos - grandão; a mulher vestido de preto que acompanhava quem passasse sozinho, lá, 'praquelas' bandas do cemitério velho; e a porca dos dentes de ouro e seus filhotinhos. Zuada danada. Se lembra da 'purteira' do balanço, né? Muita gente já levou carreira por ali. Por isso, lhe digo, quem levanta 'difunto' encontra assombração. Se existe ou não existe... não sei. É preferível rezar e se confiar em Deus. Esse negócio de igreja, de ir todo dia para missa, não. Domingo já tá bom. E se não tiver de chuva. Num vou adoecer. É o padre que vai vir me dar remédios. nam! Puxei ao meu pai.

Antônio. Minha mãe chamava: Antôn-ní-nhó. Era engraçado. Pai era uma graças. Brabo. Teve uma vez. A da calçada. Uma vez ele inventou de fazer a calçada lá de casa. Pai fazia de tudo. Tinha oficina, montava casa, desmontava o que tinha de desmontar e fazia raiva. Não muita. Mas o bastante.

- Seu Antônio. Num pode fazer calçada assim. Lisa, lisinha, desse jeito. A prefeitura num deixa.

- A calçada é minha e eu faço do jeito que eu quiser. É 'prá' danar queda em gente! Quero ver nêgo se danando no chão!

- Seu Antônio, e as crianças, seu Antônio?!

- Que faça de conta que essa calçada é do cão!

Nessa hora, mãe apareceu e disse:

- Do cão não! Deus me livre!

E ele desdizia:

- Do cão sim. Do cão! É pra danar queda em gente! Quero ver as pernas de quem cair assim, blummm, no ar.

Assim dito. Assim se fez. Calçada feita. Lisa que nem manteiga. Escorregava que era uma beleza. Daí, deu uma chuva e o primeiro a cair na calçada quem foi? Ele. Na mesma hora, instante, se levantou, foi lá dentro, pegou as ferramentas e, enquanto quebrava a calçada todinha, dizia alto e na chuva:

- 'CACHORRAh DA 'MULESTAh'! VOCÊ NUM VAI 'DÁh' MAIS QUEDA EM NINGUÉM, 'INFILIZ' DOS QUATROCENTOS SEISCENTOS MILIGRAMA!

Pai era engraçado demais. Não engolia desaforo. Eu também não. Agora você já sabe da minha língua solta. Quando tem algo errado, eu digo mesmo. Quem vier 'pro' meu lado com suas 'enrolada', leva um batido. Já estou velha digo o que quero e vou pra onde eu quiser.

Quando chega seis horas, não conte comigo 'pra' nada. Nos intervalos da novela coloco sua jantar. Você já sabe. Saiba a hora. 'Pra' tudo na vida isso é necessário. Paciência. Coisa que meu pai num tinha. Vinha um homem andando na rua, em cima de um jumento, beeeeem 'devagarzinnn'. Pai olhava e dizia:

- Tá vendo que eu num ando num jumento desse! Eu 'pêgáva' era o jumento e 'butava' ele nas costas e ia simbora, 'djábo'! 'Djábos' te leve com tua moleza!

É, prentis, seu bisavô era engraçado. O povo gostava dele?

Gostava sim. Só era um bebo chato. Ele parou de beber no dia em que de tão bebo, subiu numa casa, subiu, subiu, e num soube mais descer.

- Cachorra da mulesta! Que eu num bebo mais! Nem saber descer de uma casa eu 'tou' sabendo. Cana 'mizerávi'. Num bebo. Num bebo. Num bebo mais!

Mas antes disso. Antes de parar de beber. Teve um episódio. Assim como tantos outros que lhe conto.

Lá 'pra' banda de Araruna tinha uma cafezal. E nesse cafezal diziam que tinha um fantasmas, um assombro assombrando o povo. Dava Meia-Noite e lá vinha aquele negócio branco: uuuuuu- uuuuuu- uuuuuUUU! E tome carreira em quem passasse por ali, de noite. Pai, homem brabo, que num gosta de mistério.

- Amanhã, vou ver esse malassambro.

- Seu Antônio. Num vá mexer com isso. Com coisas do outro mundo ninguém..., a gente deixa quieto.

- Resolver isso amanhã.

E foi. Tomou uma antes de ir e não escutou o que Quatocão falou de não mexer com as coisas do além.

Meia-Noite. Lá vinha vindo aquele vulto branco. Na direção de pai.

- uhaaaaahhuuuuu...

Aí pai 'pra' trás gritava também:

- eeeeehhhhhuuuuaaah!

E a alma penada:

- muahahahaaaaaaaaa...

E Pai, mais alto:

- ihuaahahauuuuaaaa...

Num sei quem era mais marmotento: ele ou a alma. Só sei, meu fi, que essa alma percebeu que pai num ia correr. E, vendo isso, começou a pegar de volta 'pros' cafezais. Correu caminho de volta. Ligeiro. Corrido. Como 'djábo' foge da cruz. Pai, vendo a arrumação, meteu carrerão atrás da penada.

- CACHORRA DA MULESTA, EU LHE PEGO! CORRA! AMALDIÇOADA! VOCÊ TARÁ COM O SETE PELE, CAPETA!

Era pega 'pra' capá. Ela na frente, por cima de pau e pedra, e, ele, atrás, chamando tudo o que é nome, menos o de Deus.
Pois foi. Quando 'défé' a alma se atrapalhou e 'trubicou', estatelou-se no chão, dando tempo 'pra' Pai alcançar.

- Tá presa! CACHORRA DA MULESTA! Ahhhhhh... é você?

- Seu Antônio, pelo o amor de Deussss! Num conte isso a ninguém!

- Como é que você num tem vergonha?! Assombrando o povo a essa hora da noite! Eu vou é encher a rua amanhã! Vou contar a 'tudin'.

Ele não contou. Só se soube que nos dias que se passaram o malassombro tinha sumido. Findou. Acabou.
Seu Bisavô tem muitas dessas histórias. Depois lhe conto mais. Vou ver minha novela agora."

Mas vó, peraí, quem era o malassambro?

"Ah, o malassombro era uma mulher que botava chifre no marido. Ela fazia as presepadas dela e depois ia fazer essas 'milacrias' no meio da noite.

Tinha gente 'pra' tudo naquele tempo. Imagine agora que tá tudo 'sarrabuiado' assim. Deixar a louça aí, depois lavo. Ligue lá na globo 'pra'mim, enquanto coloco o café 'pra' gente."

Tá bom, vó. Conta aí de novo a vez do abacaxi, a da botija, a da briga na feira, a da topada na pedra?

"Depois. Vou ver minha novela. E vá ligar a televisão. Cuida! Já começou!"

Tá em Datena ainda.

"Quando acabar Datena começa. Deixa aí. Queimaram o dentista. Hoje tem que ter dinheiro, porque se não tiver os bandidos queima. Queima ou dão umas 'tapa' boa."

É, vó. O cancão tá piando.

"Nem piando tá mais. Mataram já".

É mesmo.

"Tu já vai segunda, né? Num instante se passa. A casa fica um silêncio. Gosto quando tão todos em casa."

É... Num instante, Ave Maria!

"E deixe esse curso. Coisa difícil, nam. No meu tempo de escola, eu colava tudo. Quebrar cabeça com isso. Meu negócio é cozinhar um bom comer."

'Pia' os exemplos. O feijão estava uma delícia mesmo.

"Mas eu já digo. Em razão de estudo não quero que meus netos puxe nenhum a mim. E escolha outra coisa, isso não é 'pra' você. E se for, num é agora."

Mas vó...

"A novela começou. Essa mulher aí é uma bandida! Enrola o pobi."

Qual?

"essa aí, ó".

Mas você só faz dormir nas novelas... como sabe?

"Eu? Eu não. Sei tudo o que se passa."

Vó. Vó. VÔ!

"OI?! Deixa de grito, menino."

Você aí. Dormindo.

"Tava não".

Tava.

"......."

Vó. Vó. VÔ!

"Que é, menino?"

nada.

"Pois me deixe assistir a novela aqui."

Tá.

***

Tá certo vó. Pois a saudade fica e somos nós que vamos. No tempo. Na lembrança. Na memória. No coração. No construir da construção construída da nossa vida de sonhos e realizações.

Parabéns, minha vó. Obrigado por ser minha vó. E por fazer aquele pão francês com manteiga e suco de maracujá que só a senhora soube e sabe fazer. No tempo, no espaço e na minha infância.


Prentice Geovanni